O toque da campainha provoca uma torrente caótica de vozes estridentes e cadeiras a arrastar no chão da sala. A professora suspende o discurso, o raciocínio interrompido. A ideia paira no ar, incompleta, e esmorece no silêncio súbito da sala, abandonada pela turma, sem sombra de civilidade ou cortesia.
A professora aproveita a quietude da sala agora deserta para arrumar com vagar os seus pertences espalhados na secretária. Consulta mais uma vez o seu horário deste ano, que ainda não conseguiu memorizar. No tempo seguinte estará a lecionar numa sala do bloco oposto àquele em que se encontra. Terá de esperar para outra altura, o cafezinho que tanto lhe apetecia, sentencia com um suspiro. Melhor será pôr-se já ao caminho, que os dez minutos do intervalo passam num rápido e os seus ossos já não lhe permitem valentias. Passou há pouco a barreira dos sessenta – e de serviço leva já mais de trinta e cinco anos.
Uma vida inteira, cisma, enquanto caminha com lentidão e cautela. Lembra-se dos primeiros anos da profissão que escolheu ainda era ela uma menina de tranças. Recorda-se dos quilómetros que palmilhou por todo o país, de quantas madrugadas viveu estrada fora, de mala aviada e uma vontade imensa de exercer aquele ofício, um entusiasmo que lhe enchia o coração e compensava a falta que tantas vezes sentia da sua casa e dos seus.
O percurso ao longo dos corredores é penoso e necessariamente prudente. Ao desequilíbrio traiçoeiro das pernas aliam-se as armadilhas do caminho. Por todo o lado há correrias destravadas sem rei nem roque, há rasteiras, encontrões e boçalidades gritadas. Encostados às paredes, magotes de adolescentes pairam alheados, numa adoração hipnótica e pasmada do telemóvel.
Caminha em permanente sobressalto, como quem atravessa um campo minado. Ouve o toque estridente de entrada no preciso momento em que dobra a última esquina e escassos metros a separam da sala de aula. Ao fundo do corredor os seus alunos confraternizam ruidosamente, num ritual que se assemelha a uma dança tribal primitiva, com gritos e grunhidos, coroada a espaços com sonoros arrotos e gargalhadas boçais. Lá no meio da matula, alguém berra: “fónix, lá vem a estúpida da velha!” e é agraciado com um ramalhete de risos alarves.
Avança mais uns passos contrariados, o coração a encher-se-lhe de um desejo imenso de dar meia volta e sair dali para nunca mais voltar. Para se forçar a prosseguir, procura dentro de si resquícios do prazer que sentia em ensinar, mas só consegue encontrar cansaço e desilusão. Um sentimento avassalador de inutilidade e desperdício percorre-a como um espasmo. Sente-se irrisória e transparente, como um espírito etéreo de professora que agora vagueia fantasmagoricamente numa escola de que tanto gostou, também ela já desaparecida.
MC
Professora e autora do blog Estendal
Não me sai da cabeça o ‘cheira a mofo’ ao passar para entrar no espaço de aula e ouço as gargalhadas, tal qual como se fosse hoje…
Mais um ’empurrão’ que me levou à decisão que tomei, já lá vão mais de 2 anos. Quero lembrar as memórias felizes, quando dizia aos ‘quatro ventos’: Sou feliz por fazer o que gosto e ainda por cima ser paga por isso.
lindo!coragem para todos nós que melhor nunca virá! nao contive a lágrima
dramaticamente verdadeiro.
Sou eu, assim mesmo…. com raríssimos momentos de excepção, já tão fugazes! É assim a banalização do nosso quotidiano. Ouve-se isto isto e outras coisas…
Para se chegar a esta situação, não esquecer e agradecer tudo o que a então ministra da Educação – maria de lurdes rodrigues – fez para que os professores tão desprestigiados sejam. A “yessman” do Sócrates.
Não terá sido ao contrário? Não sou professora, avalio de outra perspectiva.
Está de fora portanto…
Muitos pais continuam sem perceber que em casa os filhos têm uma atitude e na escola outra. E eu também sou mãe. Claro que há exceções. Muitos pais não averiguam os comportamentos que os filhos tiveram em determinada situação. Protegem os filhos e ainda falam mal dos professores ou pessoal não docente, dando força a que os filhos tenham reações piores, pois sentem-se protegidos. Quando um professor decide reunir com um pai, sobre determinada atitude displicente do educando, é sempre positivo o aluno estar presente nessa reunião. Perante factos não há argumentos, pois nessas situações os alunos acabam por contar aos pais o verdadeiro episódio da história que criaram. É visível a tristeza dos pais que se sentem envergonhados com a situação é só aí é que percebem que afinal nem sempre podem acreditar em tudo o que relatam os filhos.
Muito bem retratado.
E muito triste que o estatuto de professor tenha sido objecto de desprestígio ao longo dos anos, uma vergonha.
Triste país, este, onde nasci e vivo.
Chorei. Sinto-me triste. Tenho 50 anos e é, vezes demais também quero voltar às costas e fugir…
Coragem Ana Paula, não desanime 😉
Deixai- os envelhecer aos 30″ pq é isso que vai acontecer e eles viverão sem nada para lembrar e sofrerão na pele o que hoje fazem. Força e animo até ao fim.?
Cabeça erguida e dignidade.
Um grande trabalho psíquico.
Nestas alturas há que pensar que o professor tem de saber ser 1 actor.
Infelizmente.